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Coluna da Visão de 23 de Setembro
Região Profunda
Boaventura de Sousa Santos
Usa-se a expressão país profundo para designar realidades nacionais que, apesar de muito ricas e profundamente enraizadas, passam despercebidas aos governantes e à opinião pública. Por analogia com este termo podemos falar de região profunda para designar a região mundial de língua oficial portuguesa que na última semana se reuniu em Coimbra no VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais e que congregou, durante três dias, mais de mil investigadores, vindos de todos os países que integram esta região.
Os governantes fizeram-lhe vista grossa, tal como os media que cada vez mais vêem só o que a classe política quer ver.
E, no entanto, durante estes dias, vibrou entre nós uma realidade cultural riquíssima, de grande importância estratégica para o futuro global da língua portuguesa. Da maneira como se manifestou, esta realidade teve bem presente as suas raízes multisseculares.
Sem perder de vista a violência das relações coloniais em que tais raízes, pela primeira vez, germinaram, mostrou a sua total disponibilidade para frutificar em novos relacionamentos igualitários e com pleno respeito pelas múltiplas diferenças culturais, económicas, locais e políticas que povoam o espaço geopolítico da língua oficial portuguesa.
Enquanto o Portugal oficial se revia necrofilamente nos restos mortais do primeiro presidente da República, em Coimbra germinava com grande entusiasmo a teia do futuro onde se há-de construir o lugar estratégico deste espaço num mundo globalizado.
O espaço cultural e científico de língua oficial portuguesa é o espaço mundial com a mais longa duração histórica de contactos entre a cultura europeia e as culturas não-europeias. Dele faz parte o território do mundo que esteve durante mais tempo sujeito a ocupação colonial efectiva: Goa, entre 1510 e 1962.
Tais contactos foram extremamente desiguais e, por vezes, muito violentos, mas, ao longo de tantos séculos, passaram por tantas vicissitudes e tocaram tantos aspectos da vida de tanta gente que hoje são parte integrante das nossas identidades como portugueses, brasileiros, cabo-verdianos, guineenses, são-tomenses, angolanos, moçambicanos, timorenses e goeses. Dessas identidades emerge um modo próprio de compreender o mundo, uma compreensão que será tanto mais enriquecedora quanto mais consciente estiver da sua diversidade interna.
O facto de os brasileiros estarem mais preocupados com a reforma agrária e o racismo, e os angolanos e moçambicanos mais preocupados com a manutenção do acesso à terra por parte dos camponeses e a construção de sistemas de justiça adequados às realidades dos seus países; ou o facto de o HIV/SIDA ser uma maior preocupação entre os países africanos e de darem à medicina tradicional um relevo muito maior que outros países da comunidade, enquanto a degradação das políticas de saúde e de educação ou do emprego preocupam mais os investigadores portugueses, são factos que, em sua diversidade, manifestam uma profunda cumplicidade na busca de sociedades mais justas, livres e solidárias. Em suma, mais democráticas.
Trata-se de uma energia cultural, científica e política notável que se vai consolidando nas iniciativas que se vão multiplicando entre os congressos, tais como intercâmbios de professores e alunos, projectos de investigação conjunta, partilha de bases de dados, etc.
Em geral, os governantes da comunidade de países de língua portuguesa ainda não se deram conta do potencial desta energia e da riqueza das propostas em que ela se vai traduzindo.
Por isso, continuam a ter reuniões inúteis, sem agenda, trocando retórica vazia durante o dia e divertindo-se à boa maneira lusófona durante a noite, esbanjando o dinheiro dos contribuintes. O contraste com a penúria e o entusiasmo dos jovens cientistas sociais africanos, juntando tostões para vir ao congresso construir o seu futuro, não podia ser maior.
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