segunda-feira, 26 de dezembro de 2005

Sementes

Olhou para os livros todos e não teve vontade de ler nenhum.
Olhou para o seu violão, para os discos, mas não quis ouvir nada.
Pegou no computador portátil e digitou: nada, não quero nada. Mais nada.
Tirou as letras do itálico e começou a escrever normalmente, ainda a pensar sobre o que poderia dissertar. Mas nada o inspirava, nem o ruído dos passáros na rua.
De repente, apareceu algo. Uma pequena frase começou a surgir em sua cabeça, que ele tinha dificuldades de apreender, mas que ia se intensificando...
... procuro uma palavra, mas o meu caderno de anotações está tão cheio, que não é fácil encontrar a correcta ...
A procura por nós próprios é cada vez mais difícil neste mundo tão massificado. As pessoas cada vez mais voltam as costas para si mesmas. Tiram fotos de monumentos sem os verem, comem comidas sem sabor, pensam que pensam, mas não pensam.
Na verdade, o que todos querem é saber o que os outros pensam acerca de um assunto e tentar achar o mesmo. O melhor critério (se não o único) é o da maioria. Todos querem vestir a mesma roupa, trocando apenas as marcas e as cores.
"Que horror! O pessimismo que eu verto aqui também tem um pouco a ver com isto. Devo estar a ser fortemente influenciado pela crise e pelo défice".
"Se eu plantasse numa horta sementes iguais às palavras que escrevi hoje, com certeza as sementes já iriam tão maduras e tristes para a horta, que quando se desse o nascimento das plantinhas, as mesmas já trariam todos os frutos apodrecidos".
Parou reflectiu, tentou encontrar significado para as poucas frases que havia escrito. Percebia menos de agricultura do que de escrita, menos de escrita do que de leitura, menos de leitura do que de filosofia e, sem pretensão nenhuma, haviam brotado dos seus dedos aquelas palavras todas. Vãs? Com sabedoria?
"Hoje vou encher a horta de sementes novinhas, inocentes e sem preconceitos.
Vou deixá-los crescer em paz, sem enchê-las de pessimismo. Sem velhos do Restelo.
E, espero que as sementes esqueçam que deveriam ser apenas plantinhas na horta e consigam transformar-se em passáros, para voarem para longe do lugar onde apenas servem um fim: serem exploradas, até ao mais ínfimo dos seus frutos, de sol a sol, sem nunca ninguém lhes dizer o quanto os seus frutos são bons, o quanto trazem sabor às mesas, quão agradável é o odor e paladar que proporcionam".

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